sábado, 3 de março de 2012

Aos meus operadores de Lisboa:)

Sei que não vou cativar muita gente com este testemunho de vida. Mas apeteceu-me colocar esta vivência.

Há ano e meio vim para Lisboa. Nesta viagem, as minhas companhias eram um rádio e lágrimas num rosto com alguma languidez e apreensão em ir para uma cidade onde tudo acontece. Nunca gostei da nossa capital.
Ano e meio depois, o impensável sucede: sair desta cidade com um centro de emoções abastado de sentimentos indescritiveis. Parto mais resistente e com vivências que nunca vou esquecer.
Nesta passagem por uma cidade que não é para todos, ladearam comigo pessoas que não vivem...mas que sobrevivem. Trabalhei com todo o género de gente que possam imaginar. Negros, brancos, pessoas de outra nacionalidade, outras que foram abandonadas pelos pais,tóxicos, alcoólicos, ex reclusos, vitimas de violência doméstica, pessoas com carências extraordinárias...tudo isto e muito mais. Não, não trabalho em nenhuma instituição de apoio á vitima, nem nos AA, reinserção social...! A minha actividade profissional é em Marketing, num Grupo Hoteleiro, mas este “tipo” de pessoas conviveram diariamente no meu local de trabalho cinco dias por semana e várias horas ao dia. Porquê escrever sobre elas, é a pergunta que suscita a muitos! Porque estas pessoas...ensinaram-me mais que eu a elas.
Não nos damos conta do dia a dia de muita gente, ou porque não queremos saber, ou porque a pobreza atemoriza muita gente, ou porque os “drogados” são seres inúteis á sociedade, ou porque um ex recluso é apontado e “recluso”a vida inteira por nós seres perfeitíssimos, ditos normalíssimos e íntegros! Puro engano, quem concebe desta analise está longe da perfeição e da realidade.
Todos os dias a minha ida para o Hotel era a parte do dia mais complicado. Sim Hotel, vivi ano e meio num Hotel, com um pequeno almoço abastado. Tinha ar condicionado, nunca passei nem frio nem calor, tinha um cozinheiro todos os dias a sugerir-me uma boa refeição, faziam limpeza ao meu quarto, mudavam as toalhas todos os dias e ainda me perguntavam se precisava de alguma coisa! Porque era difícil a ida para “casa”?! Porque morava nos Restauradores e quando saia do metro, os sem-abrigos faziam as suas camas de papelão no vão das escadas das casas, nas paragens dos autocarros, nos bancos do jardim...sim, sentia-me mal. Via pessoas mutiladas em esquinas com papeis escritos a pedir dinheiro, não tinha a percepção que o barulho dum moeda causava tanto impacto. Assistia a crianças em colos que ás vezes nem sabiam se estavam a dormir ou a agonizar. Estas pessoas, como nós as chamamos, já foram “normais”, hoje são alvos a ignorar, desprezar e o mais triste a ter “pena”! Muitas vezes questionei sobre a vida que um dia tiveram. È uma grande lição de vida, faz-nos meditar em muita coisa. Parei de me queixar! Ponto!
Como referi atrás, as pessoas que trabalharam comigo ensinaram-me mais que eu a elas. Tenho esta realidade dentro de mim e na minha profissão tenho o prazer de conviver com todo o tipo de pessoas, assim como conhecer o Pais de lés-a-lés. Mas esta estada em Lisboa enriqueceu-me mais enquanto ser humano. Olhar para uns olhos tão cheios de nada a nível financeiro e material e repleto de tanto a nível de padecimento....questionamos muitas coisas. Se tenho pena deles?! Nunca. Tenho é pena de mim se me queixo da vida que tenho. Se não lutaram por uma vida melhor? Claro que sim. A diferença é que a vida lhes tirou muitas vezes o tudo do pouco que tinham, para recomeçarem novamente tantas vezes. Nunca fui abandonada, nem tóxica, alcoólica, vitima de violência doméstica ou reclusa, para poder entender melhor a dor destas pessoas, mas se as ouvirmos... deixam-nos entrar na vida delas e sentimos um pouco a mágoa que as assola. Não sou nenhuma Teresa de Calcutá ou Santa...mas tenho a maior consideração pelo ser humano, e por conseguinte, sinto que estou num patamar superior a muita gente. Este nível que menciono, não tem a ver com inteligência, mas sim de vivenciar experiências de vida que muitos infelizmente não podem ou não querem sentir em profundidade algumas emoções e realidades.
Estes operadores marcam-me para a vida inteira, mas duma forma sublime , peculiar e sinto que serei uma amiga ímpar também para eles. Ao contarem as suas histórias, tiveram que abrir o seu coração, narrar momentos que queriam banir. Sinto-me previligiada por ser uma das “eleitas”para desfragmentar e talvez amenizar um pouco essas dores. Nunca resolvi os seus problemas, mas em cada “página” dessas histórias, talvez conseguisse mudar um pouco o final de cada folha.Vi muito choro quando abriam as “portas” das suas vidas, pareciam estar novamente a vivenciar tudo.
Eu não fui apenas a Chefe deles, fui um porto de abrigo para muitos também. Todas estas “historias” fizeram-me parar para pensar, como passaram anos numa prisão, como foi lidar com a ausência das suas pessoas especiais, como era o dia a dia numa cadeia com muros altos que dividiam o nosso mundo do deles. Tocaram no fundo da minha alma mães sem dinheiro para dar de comer aos filhos, mães que bebiam e muitas vezes davam o corpo para se sentirem “amadas” duma forma que sabiam não ser a mais correta. Filhos abandonados pelos pais! Viviam um dia de cada vez, porque o futuro delas só ia até amanhã, nada mais. O “daqui a dois dias”, não existia.
Adolescentes violados por familiares, adolescentes com um olhar isento de mimos...quando lhes dava um abraço estranhavam, mas sabiam abraçar. Isto é tudo o que vi, vivi, senti e existe no mundo real.
Cada vez tenho menos paciência para futilidades e para ouvir a palavra” crise”, para estas e outras pessoas a tal CRISE sempre as acompanhou.
Gostamos ou não duma cidade, aldeia ou vila devido ás pessoas. O local pode trazer-nos paz ou não, mas são as pessoas que nos liga e une...e fazem ter ou não saudades dos sítios. Lisboa extasiou-me pelas pessoas que conheci e vou voltar ,na certeza porém, de estar de novo com elas. Aprendi ainda mais a observar e a estar mais atenta ao que me rodeia. Observar é o meu passatempo preferido, mas educaram-me que posso observar e em simultâneo viver um pouco a vida de alguém pelas suas memórias.
Neste ponto, podem formar a ideia que toda a gente conhece alguém assim, sim concordo. Mas conviver com estes seres humanos dentro duma sala, todos os dias, várias horas, várias semanas e meses...é diferente. Quem olha para eles não se apercebe de nada, só notamos algo, quando se olha para lá do olhar deles...e só entramos neles, se deixarem.
A minha vida é feita de “historias”, e com pessoas bem reais dentro delas. À minha equipa de Marketing um muito obrigada por me fazerem desenvolver mais a nível pessoal, por deixarem que entrasse nas vossas vidas sem receios, obrigada pelo carinho e obrigada acima de tudo por me darem o que muitas vezes voçes não tinham...motivos para sorrir em Lisboa.
O pouco que lhes dei, foi um “tanto” para eles, uma dádiva...e este pouco para a maior parte das pessoas, não é nada.
A diferença entre elas e eu, só vejo duas: são umas guerreiras. Eu luto para ter mais, elas lutam para serem “vistas”, compreendidas e aceites por um mundo que por acaso é de todos.
A segunda diferença é que “nós” temos tatuagens exteriores e elas...“tatuagens” interiores, imersas em ecos gigantescos, com movimento...e sem cor.
Uma reflexão para “nós” seres perfeitíssimos: No lugar do coração muitas vezes temos uma pedra de gelo...é bom tirá-la, ou deixar essa pedra gélida derreter.
Tenho dito!

Tila de Oliveira